segunda-feira, 26 de junho de 2017

Dica da semana Cinestória #14 - Saneamento Básico, o Filme

Um plano geral que desce do céu azul, apresenta uma comunidade de poucas casas cujo centro é a igreja, até chegar em uma roda de pessoas que debatem um problema da realidade local. Uma delas, Joaquim, chupa uma bergamota, desmesuradamente, enquanto pondera com um outro integrante do improvável conselho e seu sogro, Sr. Otaviano, sobre como soa ruim a expressão “esgoto da comunidade” que aparecia no requerimento formal que estava sendo relatado e redigido por uma diligente e esmerada Marina, sua esposa.


Esta abertura, de fato, nos apresenta os personagens principais da trama e a bucólica Linha Cristal, comunidade do interior da serra gaúcha onde o enredo se passa, mas Saneamento básico, o filme, é mais que uma comédia de costumes com estereótipos interioranos expostos a coisas novas e desconhecidas e como lidam com elas. 

O argumento é o seguinte: a referida comunidade vem sofrendo com o mau cheiro e demais consequências de um esgoto a céu aberto. Submetem à subprefeitura o pleito para construção de uma fossa. Não há verbas. Entretanto - sugere a funcionária que atende os solicitantes -, há um recurso de edital federal (R$ 10 mil) que será devolvido e que poderia ser usado para aquele fim. Só que este edital é de fomento à cultura, então há a necessidade formal de se submeter um roteiro de um filme, e realizar o filme em si. Desvios de finalidade e dilemas éticos à parte (ou melhor, eles são explorados no filme, mas vamos adiante por hora), começa a imersão dos personagens nas agruras da sétima arte. Surge então o roteiro de O monstro da(o) fossa(o).


Assim que a metalinguagem estrutura o filme de Jorge Furtado, que também assina o roteiro (um dos bons pontos do filme, junto com as atuações e a luz sempre a serviço da metanarrativa e da valorização dos “cenários” locais). Temos um filme dentro do filme. Acompanhamos, rindo bastante, as peripécias dos personagens em sua missão, como saber pra que serve um roteiro, a descoberta da possibilidade de empregar a câmera como se fosse o olhar de um dos personagens (a subjetiva), enquadramento, efeitos especiais, montagem (tem isso também?!), edição e etc. 


Na atuação fetichizada e cômica dos mais novos atores e nas escolhas esteticamente duvidosas que livremente constroem O monstro do fosso bem poderíamos pensar, assim de cara, que a pobreza cultural que parece sobressair na sua produção é uma condição local, não contornada mesmo com o recurso ao técnico (Zico) e o correto manuseio do instrumental tipicamente cinematográfico, como a improvável câmera de Fabrício. Entretanto, Saneamento básico permite entrever, a partir da ideia mesmo de que o cinema com suas técnicas possibilita a universalização das suas obras, que sua assimilação em certos locais só reflete o universal, em regra, enquanto fetiche mesmo e, neste sentido, sem capacidade de sublimação daquela realidade na qual são raras as iniciativas de espelhar-se por intermédio da arte. Veja-se por exemplo a cena em que o personagem do grande Paulo José faz uma ponta no filme, com uma atuação tão intuitivamente boa como remotamente orientada por uma sensibilidade artística permeada por outras mediações, inclusive geracionais. 

No mesmo sentido, esta ambientação regional do enredo não exclui os atravessamentos mais genéricos presentes na película, como os problemas das políticas públicas de fomento à cultura, os entraves burocráticos, a sombra das empreiteiras, dentre outros temas. 

Por fim, é interessante observar o seguinte: no fim das contas, a comunidade de certa forma estaria barganhando um traço constitutivo de sua realidade, ou seja, sua cultura, pela realização do direito fundamental ao saneamento básico. Das duas produções que seriam realizadas em paralelo ao longo do filme, ou seja, a fossa e o filme-sobre-seu-monstro, a primeira é o canal por onde passa o esgoto da comunidade; já a segunda, ainda que de maneira enviesada, fetichizada e cômica, acabou se tornando o canal por onde essa mesma comunidade fez passar a descoberta da possibilidade de espelhar-se na tela.

Luís Henrique Orio
Professor do IFC Luzerna

FICHA TÉCNICA
Gênero: Comédia
Direção: Jorge Furtado
Elenco: Fernanda Torres, Wagner Moura, Camila Pitanga 
Duração: 112 minutos
Ano de produção: 2007
País de origem: Brasil

Nenhum comentário:

Postar um comentário