sábado, 21 de outubro de 2017

Dica da semana Cinestória #23 - Kinsey – Vamos falar de sexo

E se a sexualidade humana não fosse definida pela heterossexualidade como padrão, mas concebida a partir da própria diversidade de experiências sexuais? Essa foi uma das ideias defendidas por Alfred Kinsey (1894-1956), biólogo de formação que dedicou boa parte de sua vida a estudar o comportamento sexual humano. Sua biografia e sua pesquisa são retratadas no filme Kinsey – Vamos falar de sexo.


De uma maneira bem comum às cinebiografias, o filme retrata desde a infância de Kinsey (Liam Neeson), marcada pela autoridade de um pai religioso que reprimia qualquer forma de “desvio moral”, especialmente aqueles ligados à sexualidade. A obra também retrata como um dos estopins do interesse de Kinsey pela compreensão da sexualidade humana a noite de núpcias de Kinsey e de sua esposa Clara McMillen – personagem muito interessante no filme, brilhantemente interpretada por Laura Linney – em que, ambos virgens, têm uma experiência sexual bastante frustrante e dolorosa e, ao buscarem ajuda médica, se veem ainda mais sem respostas.


Uma das partes mais ricas da obra é a representação dos métodos de investigação do pesquisador, tema para o qual o filme reserva cenas interessantes. Ao longo de 15 anos de estudo (1938 a 1953), Kinsey e sua equipe entrevistaram 16.392 pessoas, sendo 8.603 homens e 7.789 mulheres¹. Muitas dessas entrevistas aconteciam em locais que podemos considerar como pouco acadêmicos, como prisões, bares, banheiros públicos e boates gays, mas eram os locais possíveis de se falar sobre sexo de forma mais livre², uma vez que nos Estados Unidos até a década de 1940 todos os estados norte-americanos proibiam as relações homossexuais, em quase todos o país o coito era proibido aos menores de 18 anos e em 70% dos estados o coito pré-conjugal era condenado como ilícito¹.

No filme, as entrevistas aparecem em diversos momentos e são retratadas em close up ou em planos detalhes, focando apenas partes dos entrevistadores e dos entrevistados, como a boca e as mãos, raramente mostrando o rosto completo ou, quando mostra, no canto da tela com parte do rosto fora do enquadramento. Os planos que focam os entrevistados e entrevistadores são justapostos a planos que representam o preenchimento do questionário com números e códigos que mais confundem do que esclarecem o espectador. O cuidado na construção das cenas das entrevistas representam a importância que Kinsey deu a essa metodologia, treinando seus colaboradores a notarem e anotarem as mínimas reações dos entrevistados ao responderem as centenas de perguntas que compunham os questionários. Ao mesmo tempo, os planos com os rostos enquadrados de forma incompleta e próxima da câmera justapostos aos planos das anotações registradas em complexos códigos que visavam manter o sigilo também representam a intimidade e os segredos compartilhados naqueles momentos.

Outra metodologia de Kinsey, também retratada no filme, foi a polêmica filmagem de relações sexuais, das quais participavam como investigados o próprio Kinsey e seus colaboradores juntamente com suas esposas. O filme retrata as implicações na vida pessoal de Kinsey, sua equipe e suas famílias, mostrando que os limites entre vida profissional e a vida pessoal de um pesquisador que dedicou boa parte de sua vida à investigação do tema da sexualidade humana são um tanto borradas.

Kinsey e seus colaboradores divulgaram os resultados de mais de uma década de pesquisa em dois relatórios: A conduta sexual do homem (1948) e A conduta sexual da mulher (1953)³. O primeiro relatório foi recebido pela população e pela mídia como revolucionário e, mesmo utilizando-se de uma linguagem estatística e científica, se tornou um best-seller. O segundo livro, porém, não gerou o mesmo entusiasmo. Ambos os relatórios mostravam que a população investigada fazia sexo de forma muito diferente ao que era propagado como a norma – sexo heterossexual conjugal com fins de reprodução – tematizando práticas sexuais como masturbação, homossexualidade, sexo pré-conjugal e extraconjugal e a natureza do orgasmo feminino. Uma das partes mais conhecidas da teoria de Kinsey é a escala da sexualidade, uma escala numérica de 0 a 6, em que o 0 representaria o indivíduo exclusivamente heterossexual e o 6 representaria o indivíduo totalmente homossexual. Todos os outros números representariam indivíduos cujas experiências não estão nem em um nem em outro extremo e que, para Kinsey, representariam a massiva maioria da população.

As contribuições de Kinsey para os estudos sobre a sexualidade humana são inegáveis. Sua obra foi uma das primeiras a investigar as práticas sexuais humanas com o objetivo de mapear como as pessoas faziam sexo, independentemente do que era considerado como a normalidade, sem utilizar a noção de desvios sexuais e morais. Suas conclusões abriram caminhos para outras pesquisas sobre a sexualidade humana, como a divulgada nos famosos Relatórios Masters & Johnson (1966 e 1970), cuja pesquisa tinha por objetivo preencher as lacunas médicas, fisiológicas e psicológicas diante das pesquisas estatísticas comportamentais de Alfred Kinsey4 e é retratada no seriado Masters of Sex (2013-2016, Showtime), com excelente atuação de Michael Sheen como Dr. William Masters e de Lizzy Caplan como Virginia Johnson.

Apesar de sua importância, Kinsey recebeu muitas críticas em vida e continua as recebendo. As críticas vão desde ser considerado como imoral que buscava corromper a puritana sociedade estadunidense, até ter a validade dos dados que obteve relativizados em seu valor científico por pesquisadores que reconhecem a importância do seu pioneirismo, mas criticam a representatividade de sua amostra em relação à população retratada. O próprio filme que retrata sua obra recebeu duras críticas em seu lançamento por “grupos fundamentalistas [que] montaram piquetes na entrada das salas de cinema para impedir a exibição e espalharam mensagens acusando o diretor de fazer um retrato suave do ‘homem que degradou os valores morais da América’”².

Em tempos de um crescente conservadorismo moral e sexual, vale lembrar que a história da sexualidade (assim como a história de uma maneira geral) não segue uma linha evolutiva. Kinsey abriu muitas portas para a discussão sobre a sexualidade em meados do século XX, mas isso não significa que essas portas estavam até então fechadas e que permanecerão abertas para sempre. Elas foram abertas e fechadas de forma intermitente ao longo da história de diversas sociedades e um filme como esse, que aborda o tema da sexualidade humana e sua relação com a sociedade, nos faz refletir sobre quais portas que queremos abertas estão ameaçadas de serem fechadas.

Isabel Cristina Hentz
Professora de História – IFSC Câmpus Jaraguá do Sul - Centro

¹ SENA, Tito. Os relatórios Kinsey: práticas sexuais, estatísticas e processos de normali(ti)zação. Disponível em <http://www.fazendogenero.ufsc.br/9/resources/anais/1278011145_ARQUIVO_ArtigoTitoSenaFG9.pdf>.

² SUPERINTERESSANTE. Kinsey fala de sexo. Disponível em <https://super.abril.com.br/historia/kinsey-fala-de-sexo/>.

³ Os títulos originais das obras são: Sexual Behavior in the Human Male e Sexual Behavior in the Human Female, cujas traduções literais seriam: O Comportamento Sexual do Macho Humano e O Comportamento Sexual da Fêmea Humana.

SENA, Tito. Os relatórios Masters & Johnson: gênero e as práticas psicoterapêuticas sexuais a partir da década de 70. Disponível em <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/S0104-026X2010000100014/12400>.

Em 1947, Alfred Kinsey e sua equipe fundaram o Institute for Sex Research. Atualmente o instituto de pesquisas ainda existe, embora seu nome atualmente seja The Kinsey Institute for Sex Research, continua investigando a sexualidade humana e também os relacionamentos. Para saber mais, acesse o site do instituto: https://www.kinseyinstitute.org/.

FICHA TÉCNICA
Nome original: Kinsey
Gênero: Biografia, Drama
Diretor: Bill Condon
Elenco: Liam Neeson, Laura Linney, Chris O'Donnell
Duração: 118 minutos
Ano de lançamento: 2004
País de origem: Alemanha, EUA

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